"Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!"
Tirei do baú a frase de
Casimiro de Abreu ao lembrar dos ovos de
Páscoa coloridos escondidos no jardim da casa de
Petrópolis. Era uma farra procurar aqueles ovinhos no meio das plantas enquanto os adultos gritavam dicas de "está quente" "está frio".
Era melhor aquilo que o gosto dos ovos do chocolate: ovos de galinha pintados de anilina.
A Páscoa era feriado de casa cheia. Todos os 8 quartos ocupados, sendo os das crianças divididos por 4 ou 5. Os "extras" dormiam em caminhas de armar de metal e vira e mexe um virava sanduíche ao sentar no meio da armação. Eram 4 dias de muita diversão.
O dia começava com todos subindo para a piscina, no alto do morro. A escadaria que levava ao platô de cima deixava os mais velhos arfantes e serviam de palco de muitas brincadeiras para os pequenos. Ainda consigo ouvir o som dos mergulhos do trampolim de louça com boca de leão, sentir a textura das bóias que ainda eram de câmara de pneu, o gosto do cloro nas batalhas navais e brigas de galo, o prazer da soneca no balanço para descansar do sol.
Quando o sino tocava, era hora de descer escadas abaixo para almoçar. "Blem, Blem, Blem" e ai de quem dizesse que não queria descer.
A hora do almoço era sagrada. A mesa enorme de madeira muitas vezes não dava conta de tanta gente e eram armadas mesinhas anexas para as crianças. Cada um tinha sua argola de guardanapo com o nome escrito: crianças de plástico, adultos de prata. Cada um tinha também sua cota de uma garrafinha de coca-cola ou guaraná caçula. Para as crianças, a tampinha de metal só era aberta "depois de comer tudo". Minha tia-avó, na cabeceira da enorme mesa, ameaçava usar uma bengala como chicote se o prato não terminasse vazio. " A varinha vai cantar", era o mantra da pequena senhora de cabelos brancos que tanto nos aterrorizava. Enquanto os adultos se deliciavam com bacalhau e haddock da Páscoa, as crianças eram permitidas a comer carne. Ufa! A longa duração do almoço fazia com que inventássemos distrações como brincar de "escravos de jó", passando os pratos e copos de um para o outro no fim da sobremesa. Ficávamos indóceis para voltar ao jardim, mas quando ameaçavamos levantar lá vinha a pergunta: "o café já cafezou?" Era mais uma vez a senhora da cabeceira ameaçando com o toc-toc de sua varinha contra a mesa.
A tarde era um novo período de liberdade. Muitas brincadeiras no jardim, com visitas dos amigos da rua, bicicleta, skate, elástico, bambolê ... até a hora do picolé. O sorveteiro passava invariavelmente no fim da tarde, tocando a corneta para avisar sua presença. Era uma correria para o portão e lá vinha a outra tia-avó, bem menos brava do que a da varinha, com uma bolsa de metal maleável cheia de moedas para pagar os sorvetes da criançada. De moeda a moeda, devemos ter gastado uma fortuna em tantos anos de picolés.
A noite era a hora mais assustadora. Os adultos ficavam até a madrugada na sala de estar jogando biriba, assistindo tv, ouvindo música, contando história atrás de história. E nós tinhamos que subir sozinhos para dormir. Volta e meia um não conseguia superar o medo do segundo andar e implorava para dormir no canto de um sofá. Sorte de quem conseguia. Nessas horas, "um pouquinho de febre" ou "muita dor de garganta" podiam ser de grande ajuda. O pavor começava na base da escadaria de tapete vermelho, onde ficava de um lado abajur de pé com figuras em bronze e lâmpadas negras escondidas por franjas cor de sangue e de outro a temida biblioteca. Passar por aquele "estreito" sem ser atacado por um fantasma era sobreviver a mais uma noite. Depois, cada degrau que rangia pontuava um passo mais distante daquela sala onde reinava a segurança dos adultos.
NOo andar de cima, o jeito era tentar dormir o mais rápido possível naqueles lençóis gelados com um finzinho de cheiro de naftalina. Dormir e sonhar com um novo dia de Páscoa feliz.